Artigos de Opinião

Sara Brysch: “O potencial da habitação colaborativa no contexto atual português”

Sara Brysch,
Arquiteta e doutoranda em “Habitação Colaborativa” pela Faculty of Architecture and the Built Environment, TU Delft, Holanda

Por toda a Europa, as últimas décadas têm sido cenário do ressurgimento de modelos alternativos e não especulativos de habitação, que dão pelo nome de “habitação colaborativa”. Este conceito engloba iniciativas de cohousing, novas cooperativas de residentes (diferentes das conhecidas cooperativas de construção), projetos participativos ligados a fundos comunitários de terras (Community Land Trusts), abordagens de autoconstrução, entre outros.

Estes modelos têm em comum serem baseados em 1) processos de auto-organização coletiva, nos quais os futuros moradores assumem um papel ativo no desenvolvimento e gestão da habitação, e 2) tipologias alternativas de habitação coletiva, onde unidades de habitação são complementadas com áreas comuns (cozinha e sala comuns, lavandaria, salas de trabalho, hortas, etc.). Esses dois parâmetros são variáveis: o grau de participação do usuário varia e pode abranger o projeto arquitetónico, gestão e manutenção do edifício; da mesma forma que a vida comunitária também está sujeita a diferentes graus.

Enumero aqui alguns exemplos recentes de projetos de habitação colaborativa em várias cidades europeias:

  • La Borda, em Barcelona, é uma recente cooperativa de residentes em cessão-de-uso, projetada coletivamente e auto-organizada por todos os seus membros. La Borda detém o direito de superfície do terreno (público) por setenta e cinco anos, através de um acordo estabelecido com a câmara municipal. Por esta razão, os membros da cooperativa têm que preencher os requisitos para habitação social.
  • R50, em Berlim, é conhecido como um projeto Baugruppe (grupo de construção) e é o resultado de uma estreita colaboração entre arquitetos e os futuros moradores. A associação de moradores, que cofinanciou e autogeriu todo o processo, teve prioridade na compra do terreno (graças a uma política de habitação que privilegia projetos que promovam o sentido de comunidade e a sustentabilidade ambiental).
  • Sjöfarten, em Estocolmo, por outro lado, é um exemplo típico de um cohousing sénior top-down, uma vez que foi iniciado, financiado e gerido pelo município. No entanto, esta “cooperativa de arrendamento” é fruto de um processo participativo envolvendo os futuros moradores não só em decisões do projeto arquitetónico, mas também em atividades administrativas e de manutenção do edifício. 

Estas iniciativas surgiram como tentativa de dar respostas de habitação mais sustentáveis, adequadas às necessidades de cada grupo, e economicamente mais acessíveis. Concebidos coletivamente e autogeridas por grupos de cidadãos comprometidos, estes exemplos tiram partido das vantagens socioeconómicas de projetar, construir e viver de forma coletiva. Todos contaram com o apoio dos municípios no seu desenvolvimento.

Em Portugal, nos últimos anos, tem havido sinais de interesse em explorar este conceito. Em 2018, surge a associação Hac.Ora com o objetivo de promover o conceito de cohousing em Portugal e acompanhar este tipo de projetos. A primeira Lei de Bases da Habitação, lançada em 2019, não só comtempla o conceito de habitação colaborativa como reforça o papel do setor cooperativo no desenvolvimento de soluções habitacionais. Neste momento, vários são os grupos de (futuros) moradores que se encontram formalizados em cooperativas. Existem projetos em curso (em processo de licenciamento), nomeadamente as cooperativas HabitaRegen Abrigada e HabitaRegen Sesimbra. Por sua vez, algumas câmaras municipais têm manifestado interesse em apoiar este tipo de iniciativas. 

Mas está ainda tudo muito “verde” e um pouco a medo. Há, portanto, que agilizar o processo, que já em si é longo. Há que atualizar a legislação vigente relativa ao licenciamento deste tipo de projetos (por exemplo, deixar de ser obrigatória a construção de estacionamento para automóveis ou renovar os padrões espaciais mínimos). Há que promover um conjunto de incentivos fiscais e facilitar o direito de superfície a terrenos e – principalmente – imóveis devolutos públicos. Há que criar parcerias entre cooperativas e câmaras municipais e entidades do setor social. Como tem sido feito em vários países da Europa.

É necessária, acima de tudo, uma mudança de paradigma no modo de encarar a habitação, que renove os modelos de propriedade e que permita uma maior participação de todas as partes interessadas desde o conceito à manutenção do edifício. Confiando na autonomia e capacidade de autogestão dos cidadãos, renovando o compromisso social dos arquitetos, e agilizando as condições para finalizar tais processos. 

Sabemos que não é uma solução que agrade a todos e que não vai resolver o problema (sistémico) da habitação. Mas sabemos que abre um leque de novas ferramentas para a provisão e gestão de habitação. Num país cada vez mais velho e com estruturas familiares cada vez mais diversificadas, a habitação colaborativa tem o potencial de apresentar soluções fora do mercado especulativo, espacialmente mais adequadas e com forte sentido de comunidade e sustentabilidade. 


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