Artigos de Opinião

Sílvia Jorge: “Habitação em Portugal – Perguntas que carecem de respostas”

Sílvia Jorge,
Arquiteta, Investigadora do Centro de Investigação em Território, Urbanismo e Arquitetura (CiTUA/IST-UL)

Qual o atual défice habitacional?

Quando o foco recai na habitação e nos grupos mais vulneráveis é geralmente lançado um número: 26.000. O próprio Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)¹, traçado para minorar o impacto da pandemia de COVID-19, estabelece-o como teto de intervenção no eixo estratégico da habitação. Este número corresponde ao total aproximado de agregados sinalizados no Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional², que serviria de base à preparação e implementação do 1.º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, lançado em 2018³.

Contudo, os critérios deste Levantamento não coincidem com os que determinam a elegibilidade ao 1.º Direito. Enquanto o primeiro partiu de três critérios cumulativos – construções a demolir/remover, situações de precariedade habitacional e residência permanente dos agregados –, o segundo amplia o leque de beneficiários. Os diagnósticos que integram as estratégias locais de habitação (ELH), nas quais se apoia a operacionalização do 1.º Direito, partem de outros critérios cumulativos – agregados a viver em condições indignas, em carência financeira e com nacionalidade portuguesa ou em situação regular no país. A carência financeira é determinada a partir do rendimento mensal auferido. Já o conceito de indignidade habitacional é mais abrangente, incluindo casos de precariedade (pessoas em situação de sem abrigo e vítimas de violência doméstica, e.g.), insalubridade, sobrelotação e inadequação.

Neste sentido, é fácil concluir que critérios diferentes levam a resultados diferentes. Se o Levantamento Nacional de 2018, realizado a partir de inquéritos aos municípios (187), se aproximou dos tais 26.000 agregados em carência habitacional, as ELH aprovadas até dezembro de 2021 (113) apontam para mais de 65.000. Este valor não ficará por aqui, nem a abordagem a este fenómeno, dinâmico e heterogéneo, se pode refugiar numa leitura estritamente numérica. Entretanto, outras ELH foram aprovadas (mais 54 até meados de março de 2022) e mais agregados podem ter sido integrados nestes instrumentos, uma vez que são passíveis de revisão, o que, a não ser que a capacidade de resposta seja célere, anuncia um cenário alarmante.

Que soluções se esboçam? Qual a real capacidade de resposta?

As soluções são diversas. Ao contrário do Programa Especial de Realojamento⁴, assente na construção de edifícios habitacionais para realojamento, o 1.º Direito abre-se também à autopromoção, à reabilitação e à aquisição, permitindo combinar diferentes tipos de intervenção. Da mesma forma, também podem ser várias as entidades a beneficiar de apoio, incluindo os próprios destinatários – beneficiários diretos. Para além do Estado, as entidades beneficiárias estendem-se às empresas e institutos públicos, misericórdias, instituições de solidariedade social e associações de moradores, por exemplo. Contudo, apesar desta abertura, são as ELH, a cargo dos municípios, que determinam a solução que mais se adequa a cada caso.

Entre as ELH aprovadas até dezembro de 2021, a resolução de cerca de 65% dos casos recai na reabilitação do parque habitacional, pouco mais de 20% na construção nova, 10% na aquisição e reabilitação de edificado existente e menos de 4% no arrendamento para subarrendamento, enquanto a aquisição de terrenos e subsequente construção não ultrapassa 1% do total. Prevê-se que mais de metade das soluções sejam promovidas pelo Estado, aproximadamente 56%, ficando a segunda maior fatia nas mãos dos beneficiários diretos, 29%, e os restantes 15% das empresas e entidades públicas, do terceiro setor e dos proprietários de núcleos degradados, estes últimos com um enquadramento específico no diploma. Mas o lugar de partida para a subsequente fase de candidaturas ao Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), não é igual para todos.

Num momento em que, ao abrigo do PRR, se preconiza um forte investimento na habitação – 100% a fundo perdido – e, paralelamente, se depara com um mercado de construção instável e altamente inflacionado, sobressaem a forte assimetria no acesso a recursos, sobretudo técnicos, para aceder a financiamento e a baixa execução das ELH. As respostas promovidas pelo Estado contam com recursos próprios que, mesmo se diminutos, garantem a celebração de acordos de financiamento com o IHRU e a prossecução dos trabalhos. Os restantes intervenientes, em particular os beneficiários diretos, ficam em clara desvantagem. Para uns, talvez chegue apoio por parte dos respetivos municípios ou de improváveis equipas externas dispostas a aceitar as condições do IHRU – instruir candidaturas e, se validadas, serem ressarcidas pelo trabalho realizado. Para outros, não. Uma coisa é certa: até 2026 não se dará resposta a todas e todos que precisam.

Nota metodológica:
Os dados das ELH foram recolhidos dos respetivos documentos públicos, solicitados às câmaras municipais. Das 113 ELH aprovadas até dezembro de 2021, não foi possível aceder a quatro (Penela, Vizela, Viana do Alentejo e Vila do Conde). A espacialização das variáveis apresentadas, em ambiente SIG, foi realizada pelo investigador Aitor Varea Oro, do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (CEAU-FAUP). As primeiras ELH aprovadas nem sempre especificam os beneficiários e respostas habitacionais, verificando-se com o passar do tempo um maior cuidado na sistematização dos dados ao nível destes instrumentos.

¹Ministério do Planeamento (2021). Plano de Recuperação e Resiliência. Recuperar Portugal, Construindo o Futuro. Lisboa: Ministério do Planeamento.
²IHRU (2018). Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional. Lisboa: IHRU.
³Decreto-Lei n.º 37/2018, de 04 de junho.
⁴Decreto-lei n.º 163/93, de 7 de maio.


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