Artigos de Opinião

Sofia Magalhães: “Desperdiçar o Essencial”

Sofia Magalhães,
Autora do Livro “Da raiz à rama, nada se perde tudo se cozinha”

Nos dias de hoje já muito se ouve falar em sustentabilidade. São cada vez mais marcas de carros que lançam soluções elétricas, empresas que decidem compensar as suas emissões de carbono, leis que proíbem o plástico de utilização única, marcas de cosmética que passam a ser cruelty free, mercados e supermercados que se enchem de produtos biológicos a pedido do consumidor. Mas a verdade é que tudo isto pouco importa se continuarmos a desperdiçar o essencial: alimentos.

Se por um lado estamos cada vez mais despertos para os temas associados à sustentabilidade, por outro parece que muitas vezes nos escapa o essencial neste mundo repleto de paradoxos. Em termos globais desperdiçamos um terço de todos os alimentos produzidos no mundo, o que perfaz 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos adequados ao consumo humano. Simultaneamente, cerca de 820 milhões de pessoas no mundo vivem em situação crónica de subnutrição ou de insegurança alimentar (1).

O desperdício alimentar é ainda responsável por 8% da emissão de gases de efeito estufa, imediatamente atrás da China (21%) (2) e dos E.U.A (13%) (2), quando comparado com estes países.  É muito comum pensar que pelos alimentos se decomporem de forma natural, não geram danos para o ambiente. Esta noção é, no entanto, errada porque o processo de decomposição natural e em aterro é bastante diferente. Neste último a decomposição dos alimentos acontece sem presença de oxigénio, o que gera gases de efeito estufa, entre outras problemáticas.

Em Portugal desperdiçamos 97kg de alimentos por pessoa por ano, o que perfaz anualmente perto de um milhão de toneladas de alimentos e equivale a 17% da produção nacional (3). Mas, numa visão mais abrangente, não estamos a desperdiçar apenas alimentos, mas toda a cadeia de valor que permitiu que aquele alimento chegue até nós: o solo, a água, a mão de obra, o transporte e por vezes até o embalamento. Tudo isto se perde quando um alimento acaba no lixo e é por esta razão que desperdiçar alimentos é delapidar recursos e, em última instância, desperdiçar aquilo que mais queremos proteger: o ambiente.

Num estudo recente (4), concluiu-se ainda que Portugal é o país do mediterrânico com maior pegada alimentar per capita, em grande parte porque importamos cerca de 70 % dos nossos alimentos. Ou seja, não só dependemos da biocapacidade de outros países para nos alimentarmos, como também a pegada ecológica da nossa alimentação é enorme (porque a importação implica embalamento, retalho, transporte, etc.), pesando concretamente 30 % mais do que os transportes e o consumo de energia (4).

Há ainda que desconstruir verdades herdadas e a busca da perfeição no que toca à alimentação. Fomos habituados a comer certos alimentos, de determinada forma e podemos passar uma vida a perpetuar essas escolhas sem nunca as questionarmos. Tornou-se comum comermos batatas com casca, mas continuamos a descascar a cenoura, o nabo e a curgete. Compramos sempre as beterrabas, nabos e outras raízes sem rama e nunca nos perguntamos para onde estas foram e porque são descartadas à partida (apesar do seu  inestimável valor nutricional). Queremos maçãs redondas, vermelhas e de fisionomia perfeita, bananas em cacho e brócolos de tamanho médio, não demasiado pequenos nem demasiado grandes, se possível sem talo ou folhas. Este é o standard definido para as nossas escolhas e tudo o que não corresponde não chega sequer às prateleiras do supermercado. Mas tudo isto gera desperdício alimentar, na maioria das vezes ainda no produtor que é pressionado a conseguir culturas padronizadas que encaixem nas categorias definidas pelo mercado.

Nunca as nossas escolhas alimentares foram tão importantes para a sustentabilidade como agora. Reduzir o desperdício alimentar é sem dúvida o passo mais relevante para a sustentabilidade ambiental e há que consciencializar sobre o tema. É necessário repensar, reeducar e até legislar com vista a minimizar este flagelo. Evitar o desperdício tem que ser uma luta diária mas que pode começar hoje, com as nossas escolhas enquanto consumidores. Comprar na quantidade certa, sazonal e autóctone, de produtores locais, de origem sustentável e aproveitando melhor tudo o que compramos são sem dúvida passos que farão a diferença para um futuro mais sustentável.

1HLPE — High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. (2014). Food Losses and Waste in the Context of Sustainable Food Systems. A Report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. HPLE Rep

2FAO — Food and Agriculture Organization. (2013). Food wastage footprints. Factsheet

3Do Campo ao Garfo — Desperdício Alimentar, PERDA, 2012 – http://www.cienciaviva.pt/img/upload/do_campo_ao_garfo.pdf.

4Pires, S. M., Alves, A., & Teles, F. (2020). Transição alimentar sustentável em Portugal: uma avaliação da pegada das escolhas alimentares e das lacunas nas políticas de alimentação nacionais e locais. Universidade de Aveiro e Global Footprint Network. Portugal.

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