Artigos de Opinião

João Labrincha: “Rios, cardiologista precisa-se”

João Labrincha,
Rede Douro Vivo, GEOTA

Os rios e os estuários são as veias do planeta e os berços das civilizações, que floresceram junto a linhas de água, essenciais vias de transporte e fonte de energia, onde os solos eram mais férteis e em que o acesso à água permitia o consumo e a rega. São autoestradas de vida selvagem, corredores ecológicos que asseguram um continuum naturale essencial à conexão entre habitats e à manutenção da flora e fauna.

Mas a simbiose entre pessoas e o meio foi sendo substituída pelo domínio humano dos recursos naturais. A industrialização da agricultura e a construção de açudes e barragens, enquanto infraestruturas de controlo de caudais e depósito de água, foram decisivos para a melhoria da qualidade de vida humana. Contudo, hoje, o impacte da poluição difusa, causada por fertilizantes e pesticidas, com a estagnação da água em sucessivas barragens ao longo dos rios, oferece o caldo certo para a degradação da qualidade da água.

A urgência para descarbonizar a produção energética levou à aposta em renováveis (Zarfl 2015), sendo a hidroelétrica a principal a nível mundial. Mas, apesar de ser considerada renovável, acarreta profundos impactes negativos. As barragens eliminam o “livre trânsito” de um rio, modificam o regime de caudais e de temperaturas e fragmentam os habitats (Zarfl 2015). Adicionalmente, não são uma fonte de eletricidade climaticamente neutra, já que as suas albufeiras emitem metano, um poderoso gás de efeito de estufa, no processo de decomposição da matéria orgânica (Wehrli 2011).

Destacam-se também o colapso de espécies de peixe migratórias e a sua contribuição para a erosão costeira (Wehrli 2011). A retenção de sedimentos impede o seu natural transporte e posterior deposição na linha de costa. O impacte cumulativo de várias barreiras é responsável pela retenção de mais 25 % das areias a nível mundial (Vörösmarty, 2000). Esse quadro piora no caso Português, em que os principais rios chegam de Espanha. Estima-se que as barragens hidroelétricas e hidroagrícolas das bacias hidrográficas que desaguam em Portugal são responsáveis pela retenção de mais de 80% da areia que outrora era transportada (Valle, 2014).

Muitos países começam a optar por alternativas, já que calculam o seu verdadeiro custo, ao incluir o cálculo da remoção. Com o aproximar do fim do ciclo de vida de uma barragem, acresce um problema de segurança e a solução mais custo-eficaz é frequentemente remover barreiras obsoletas. Os EUA já o fizeram em mais de 1 700 casos (American Rivers, 2020) e em Espanha mais de 200, entre 2006 e 2016 (WI & CIFEF, 2016). A organização Dam Removal Europe tem mapeado essas remoções na Europa.

A magnitude dos impactes demonstra a importância da gestão dos recursos hídricos à escala da bacia hidrográfica. Envolver todas as partes interessadas na construção de um modelo de governança, assente na capacitação e no conhecimento, permite gerir bens e evitar conflitos. Reconhecendo a importância dessa abordagem, surgiu em 2018 a Rede Douro Vivo, uma parceria multidisciplinar de cientistas, ambientalistas, juristas e especialistas em educação e participação pública. O motor desta iniciativa foi o desconhecimento: como estão os nossos rios? Onde se localizam as mais de 7 000 barreiras em Portugal? Ou, porque ainda se projetam barragens no Douro?

Liderada pelo GEOTA, em parceria com a ANP|WWF Portugal, o CEDOUA, o CIBIO, o CIMO-IPB, o CITAB-UTAD, a FCT-UNL, a Rede INDUCAR, IUCN-Med, a LPN e a Wetlands International, a rede foca-se na criação e comunicação de conhecimento científico, na capacitação das partes interessadas e na advocacia por melhores políticas energéticas, agrícolas e ambientais.

Desde 2018, trabalhamos com as comunidades na promoção de uma gestão integrada dos recursos hídricos, desenvolvendo um quadro legal e uma matriz de critérios para o desmantelamento de barreiras obsoletas. E num estatuto de proteção de rios livres. Lançámos, em 2019, a Estratégia Energética para Salvar Rios, comprovando ser possível atingir a neutralidade carbónica sem recorrer a combustíveis fósseis ou a novas barragens. E este ano lançaremos o primeiro mapeamento de barragens, bem como de nichos de biodiversidade que importam preservar, na bacia do Douro.

Hoje, o nosso diagnóstico indica que a sustentabilidade dos rios e do planeta carece de um cardiologista especializado em despoluir e desbloquear as artérias da vida na Terra. E a ciência já nos deu a receita para a cura.


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